É debaixo de um pé de manga, sentada numa tábua de madeira, num terreno de areia batida, que a professora Joyce Barcelos Barbosa, 34, leciona português, matemática e tudo mais que Edilson Gomes Monteiro, 15, precisa aprender em Libras no 1º ano do Ensino Médio. A cena se repete semanalmente num sítio de Bananal do Sul, arredado distrito da cidade de Linhares, a 145 km da capital do Espírito Santo. Para chegar e sair da sala de aula mambembe, Joyce dirige cerca de 80 km. Usa seu carro particular e paga, do próprio bolso, a gasolina necessária desde 27 de abril. Foi quando decidiu que, se não percorresse a via sacra, Edilson, que é deficiente auditivo, ficaria perdido num limbo estudantil, sem aprender enquanto a incerta pandemia da Covid-19 não cessasse. “Edilson não estava indo para a escola desde o começo do ano, antes mesmo da pandemia da Covid-19. Entrei em contato com a família, que explicou que, por conta de uma forte chuva na região, o transporte não passava por uma ponte, que havia ido por terra abaixo. A mãe precisava de ao menos um jeito de levá-lo até a ponte que caiu, o que dá cerca de 20 km”, conta a professora. Mas Edilson seguiu isolado, do lado de lá da ponte, numa quarentena antes mesmo do vírus virar notícia na Fazenda Guaianazes, onde mora com pai, mãe e duas irmãs mais novas. Quando o distanciamento social virou regra, o governo do Espírito Santo começou a veicular aulas diariamente num canal de TV aberto, após comprar o uso do sinal numa licitação. A reportagem assistiu às aulas de disciplinas diferentes e não viu intérpretes de Libras. Para Edilson, então, de pouco ou nada adiantava. Retirar material impresso na escola e estudar em casa também não era saída. “Edilson não sabe ler e a mãe não tem conhecimento de Libras. Como ele é deficiente auditivo e não é completamente surdo, consegue captar um pouco de leitura labial e conversa com a mãe pelo que chamamos de comunicação caseira”, lembra a docente. Em Bananal do Sul, por onde se chega por meio de uma estrada precária, o sinal de internet é parco. Quando chove, a comunicação é nula. Tecnologia de ensino à distância, por lá, conta a professora, é coisa de um futuro que ainda não chegou. “Decidi então pedir permissão para atendê-lo presencialmente no sítio e a mãe autorizou. Vou de máscara, levo álcool em gel, sentamos ao ar livre, levo as atividades e dou as aulas para ele, de 8h30 ao 12h. Caso isso não acontecesse, Edilson estaria até agora sem estudar. É preciso entender que um aluno deficiente auditivo, sobretudo num momento de exceção, precisa ser acolhido, de fato”, diz. O primeiro contato entre professora e aluno foi no sítio. A sala de aula é uma ambiente totalmente desconhecido para a dupla. “A mãe conta que ele havia ido conhecer a escola uma vez. Lá, ficou apaixonado, sobretudo quando viu a quadra de esportes. Pensei: ‘Imagina o impacto nesse menino, de querer estudar, amar estudar, e não ter acesso? Como está a cabeça dessa criança?'”, questiona. E ela mesma responde: “Ele agora, com as aulas, diz que se sente feliz. A mãe conta que ele, logo cedo, já pergunta se eu vou às segundas-feiras. Ele já espera pelo dia. Vejo nele uma dedicação, um sentimento de gratidão, apesar da timidez Ele se esforça nas atividades, volta de fato suas atenções para as disciplinas”. Mãe do menino, a dona de casa Valdelice Gomes da Silva, 33, diz que ele sempre questionava quando conseguiria ir à escola. “Ficava chateado, agoniado. Depois que a Joyce começou a vir, ele melhorou até a comunicação. Pergunta quando ela vem e, antes dela chegar, já fica vigiando. Até acorda mais cedo”, comemora. A professora Joyce diz que pretende continuar percorrendo os 80 km até o final de pandemia. “Mas quero mesmo é encontrá-lo na sala de aula. Enquanto, vamos fazendo educação, atravessando barreiras. O nosso mundo é frio, mas dá para fazer diferente”, conta ela. “Comecei ter contato com surdos aos 12 anos da idade. Minha mãe me levou a um culto numa Igreja Batista, quando vi pela primeira vez uma intérprete de Libras. Fiquei me questionando o que era aquilo e, a partir do culto seguinte, só quis me sentar junto aos outros deficientes auditivos. Foi uma espécie de amor à primeira vista. A partir daquele momento, queria ser intérprete.” E foi. “Comecei a aprender ainda nova, num retiro da igreja. O tempo passou, veio no coração o sonho de fazer pedagogia. Fiz faculdade, me formei, fiz pós graduação em Educação Especial e hoje leciono na rede estadual de ensino com tempo integral”, conta ela, que antes trabalhou no comércio e como assistente em clínica médica. Na próxima semana, ela novamente se prepara para levar educação onde o sistema público não chegou. Debaixo da mangueira, numa tábua de madeira, onde Edilson sonha em ser veterinário.