“Estratégias intermitentes de distanciamento social talvez precisem ser empregadas até 2022 para evitar que o novo coronavírus continue a colocar em risco os sistemas de saúde mundo afora.” Era assim que começava uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo de 14 de abril de 2020, nos primeiros meses da pandemia de Covid, contando sobre uma pesquisa publicada na revista Science. O estudo foi assinado por uma equipe liderada por Marc Lipsitch, do departamento de epidemiologia da Universidade Harvard. Esse trabalho, a partir de dados do Sars-CoV-2 e de outros coronavírus, construíra modelos que simulavam possíveis cenários de evolução da Covid ao longo dos anos, até 2025. Nas redes sociais, o estudo e a notícia sobre ele foram recebidos com reações céticas, chacota e, por vezes, tom de preocupação. “Kkkkkkk calma ai kkkkkkk piada pronta né até 22”, dizia um comentário no Twitter da Folha de S.Paulo. “Tem cientistas esquerdistas doentes mentais”, afimava outro perfil na rede social. Nesta sexta-feira (25), o Brasil completa dois anos da confirmação do seu primeiro caso de Covid. Naquele momento, o país se tornava o primeiro da América Latina a ter um paciente com o novo vírus, que até ali matara cerca de 2.700 pessoas no mundo. Dois anos depois, o número global de mortos já supera 5,9 milhões. Reações semelhantes também estiveram presentes em uma postagem, sobre o mesmo estudo, de Atila Iamarino, doutor em virologia. “Bom, é óbvio que isso não vai acontecer”, dizia uma pessoa. “Oi átila vc viu o estudo que fala que divulgador científico que divulga cenários absurdos como verdades sem ler direito mereceria bicuda no saco até virar bola de basquete?”, criticava outro. “Lá vem o alarmista!”, completava mais um internauta. Recentemente, o tuíte de 2020 de Iamarino foi relembrado, e vários perfis começaram a responder ironicamente às postagens que duvidavam à época que ainda estaríamos, em 2022, com restrições pela Covid. Iamarino diz que o tuíte de 2020 o fez perceber que tinha furado a “bolha” da divulgação científica e estava falando com um público mais amplo. No meio científico em que circula normalmente, diz o divulgador, “o que esse artigo discute não é nada de novo”, mas uma versão formal e revisada sobre o que se sabia e sobre a gravidade da situação. Parte das críticas aos tuítes de Iamarino dizia respeito à sua primeira postagem, na qual afirmava que iria ler o estudo com mais calma depois, “mas as conclusões já são tensas”. Essa constatação era seguida de um “fio” mostrando detalhes da pesquisa. “Quem estava disposto a aceitar que a Covid era um problema ficou mal por entender a dimensão do problema, e quem não estava disposto estava entendendo isso como um ataque político”, diz Iamarino. Naquele momento, o mundo ainda estava nos primeiros momentos da pandemia. Apesar de já haver alguma informação sobre o Sars-CoV-2, a incerteza ainda era muito grande. Para se ter uma ideia, máscaras –uma proteção hoje tida como básica e essencial– só se tornaram obrigatórias no estado de São Paulo no mês posterior à publicação do estudo da Science. A OMS (Organização Mundial da Saúde) só havia declarado a Covid como uma pandemia um mês antes. Vitor Mori, físico pesquisador na Universidade de Vermont (EUA) e membro do Observatório Covid-19 BR, lembra que na época as pessoas em geral imaginavam que a pandemia não iria muito longe –ou queriam fortemente acreditar nisso. Mas parte do barulho gerado pelo artigo naquele momento, ele avalia, pode também ter sido uma compreensão errônea da ideia de intervenções “intermitentes”, como menciona o estudo. “Na época, muitas pessoas interpretaram que a gente ficaria no cenário de fechamento total que vivemos em março/abril por cinco anos. Acho que foi mais isso que assustou as pessoas”, diz Mori. Naquele momento, não estava claro o comportamento futuro do Sars-CoV-2 e não se sabia a duração da imunidade adquirida pela infecção. Considerando a sobrecarga aos sistemas de saúde que a Covid já mostrava ser capaz de provocar e a falta de drogas e vacinas, o estudo traçava cenários futuros com medidas de distanciamento intermitentes. Elas seriam “ligadas” e “desligadas” a partir de determinados níveis de contaminação, visando impedir o colapso dos sistemas de saúde –algo que lembra bastante o que vivemos nos últimos anos. Com os dados que tinha naquele momento, o estudo estimava que o Sars-CoV-2 poderia causar surtos em qualquer época do ano, algo que vimos com o passar do tempo. E apontava que, caso a imunidade ao vírus fosse curta (o que sabemos que, de fato, é), surtos anuais eram esperados. Os pesquisadores, inclusive, indicavam que haviam considerado que a imunidade contra a doença poderia durar ao menos dois anos, “mas as medidas de distanciamento social podem precisar ser estendidas se a imunidade ao Sars-CoV-2 diminuir mais rapidamente”. Hoje sabemos que a proteção começa a cair já em poucos meses, especialmente para casos de infecção, e com menor força para casos graves e óbitos. “O que esse estudo fez não foi dizer que ia durar. Foi dar uma noção de quanto tempo seria esse ‘durar'”, resume Iamarino. A surpresa de parte das pessoas foi reflexo da falta de comunicação sobre o problema que estava sendo enfrentado e o que viria pela frente. “A gente estava na época de anúncios de fechamento por 15 dias. A informação [da gravidade] existia, a falha estava na comunicação para falar que o que a gente iria enfrentar não era uma corrida leve, mas uma maratona”, diz ainda. Para Mori, foi um balde de água fria o momento em que começou a ficar claro o enfraquecimento da imunidade por infecções prévias, algo que se tornou mais evidente no fim de 2020, próximo à explosão de casos em Manaus. A tragédia no Amazonas, causada pelo surgimento da variante gama, evidenciou que novas cepas mais problemáticas poderiam surgir –algo que até então era incerto. Olhando para o estudo hoje, Mori aponta a dificuldade de se comunicar incertezas, considerando um contexto em que se buscavam (e ainda se buscam) respostas cada vez mais imediatas. “Geralmente comunicar incerteza é muito menos atrativo do que uma fala convicta dizendo que vai acontecer X ou Y”, afirma, relembrando que o estado da pandemia é atrelado ao comportamento humano e às intervenções realizadas. O físico também aponta uma certa incompreensão sobre a utilidade de modelos: eles não servem exatamente para “prever o futuro”, mas, sim, para apresentar cenários, possíveis impactos de intervenções e incertezas –pontos tratados no estudo publicado na Science. Atualmente, por exemplo, há maior compreensão de que medidas de distanciamento não precisam ser totalmente restritivas e que há formas de aplicação que impactam menos o cotidiano, aponta o membro do Observatório Covid-19 BR. Mesmo com essa evolução durante a pandemia, ainda há riscos no horizonte, diz Iamarino. “Temos o risco mundial de as pessoas estarem cansadas e da pressão econômica para falar que está tudo bem, porque não está se você for comparar com doenças endêmicas”, diz, em contraste com enfermidades como a dengue e a gripe sazonal, que matam muito menos pessoas. A dengue, por exemplo, levou a 6.429 óbitos de 2008 a 2019. Atualmente, mesmo com uma parcela expressiva da população vacinada (mas ainda com pouca gente com a dose de reforço), a Covid mata em volume semelhante em cerca de uma semana, após o surgimento da variante ômicron. “Que doença naturalizada é essa?”, questiona Iamarino.