Aos 38 anos recém-completados, o imunologista Gustavo Cabral recebeu uma missão hercúlea. No ápice da pandemia de coronavírus, está coordenando a pesquisa da vacina contra a covid-19 no Brasil. Natural de Tucano, na zona rural da Bahia, ele cresceu no pequeno povoado de Creguenhem, com menos de três mil habitantes.
Durante a infância e a adolescência, a única “pesquisa” que conhecia era a de campo, procurando frutas como manga, coco e graviola, para vender em feiras desde os 8 anos de idade. Aos 15, os aglomerados deram lugar a um açougue.
Ele passou os três anos seguintes sem estudar por não conseguir conciliar as aulas com o trabalho. Seu caminho guinou quando resolveu pegar todo o dinheiro que havia juntado para concluir o ensino fundamental, se formando com 21 anos de idade.
A graduação em ciências biológicas na Uneb (Universidade do Estado da Bahia) não só o tornou o primeiro da família a ter ensino superior completo como abriu portas para o mundo. Do doutorado na USP (Universidade de São Paulo), com sanduíche no exterior em Portugal, passou ao pós-doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra e em Berna, na Suíça.
O retorno ao Brasil veio somente quatro meses atrás, pouco antes de a pandemia explodir. Gustavo Cabral conversou com o VivaBem sobre sua trajetória, os desafios de criar uma vacina contra o novo coronavírus e a importância do financiamento público para a ciência brasileira.
Gustavo Cabral: Eu nasci em Creguenhem, um pequeno povoado no município de Tucano. Faz parte de uma área rural, era roça, uma praça e ruas ao redor. Aos 8 anos, já estava trabalhando na feira, vendendo frutas, manga, coco e geladinho. Continuei fazendo isso até os 15 anos, quando saí de casa e fui trabalhar em um açougue em Euclides da Cunha.
Eu, com essa idade, me achava um “homão” que já conseguia fazer as coisas sozinho.
Sempre cursei ensino público, parei de estudar no segundo ano do ensino médio, na verdade tentava, mas não conseguia concluir o ano letivo por trabalhar muito. Fiquei assim até os 19, quando resolvi que queria voltar para a escola.
Juntei um dinheiro, pedi ajuda para os meus pais e, pela primeira vez, paguei uma particular. Só me formei no ensino médio aos 21 anos. Quis ir para a faculdade, mas na capital, Salvador, não tinha chance de conseguir me manter. Então precisava passar em alguma universidade pública e em uma cidade barata para sobreviver. Em 2004 entrei na Uneb (Universidade do Estado da Bahia), em Senhor do Bonfim, e foi quando comecei a trabalhar com imunologia.
Cabral: Estranha, porque em teoria eu já tinha estabilidade porque trabalhava no açougue, já era estável para o nível social que estávamos acostumados por lá. Quando falei em vender tudo e estudar foi uma loucura. Mas depois consegui convencê-los. Eu fui o primeiro da família a cursar o ensino superior. Tenho três irmãos, o mais novo inclusive seguiu todos os meus passos.
Cabral: Não tinha essa abertura para pensar em fazer algo desse tipo, sabe? Ia para a escola com senso de obrigação, ajudando o pai, indo à roça, conseguindo alguma coisa para vender. Essa era a visão. Eu só consegui estudar, consegui tanta coisa, porque parei de trabalhar.
Escolhi o curso porque admirava os professores de ciências na escola. Passei a me imaginar naquilo, achava interessantíssimo. Inicialmente, até pensei em fazer educação física, porque lutava capoeira e adorava esportes. Minha família ajudava um pouco, eles conseguiam mandar pelo menos R$ 50 por semana. No segundo ano da Uneb já consegui bolsas de pesquisa, auxílio, monitoria, foi ficando mais fácil.
Cabral: Tudo mudou. De repente acabei virando referência na família. Foram objetivos traçados aos poucos. O fato de não poder estudar em Salvador por questões financeiras me motivou.
Quando fui para o mestrado foi diferente, estava com pessoas com nível intelectual ainda mais alto e pensei que também queria fazer doutorado. Passei na USP, fiz o sanduíche em Portugal em 2012, juntei dinheiro para fazer curso intensivo de inglês na Irlanda.
Daí tentei várias universidades grandes para o pós-doutorado e passei em Oxford, na Inglaterra. Ia para ficar um ano e acabei ficando três.
Tive oportunidade de ir para outros países, como a Suíça, e desenvolver projetos lá. Só voltei para o Brasil de vez em novembro do ano passado.
Cabral: Não podia imaginar as proporções. Pensei comigo que com o tanto conhecimento e tecnologia de hoje algo desse tipo não pudesse acontecer. Mas os números começaram a aumentar e fiquei preocupado, tirei férias pela primeira vez na vida e passei os dias pensando nisso. Um mês atrás voltei a São Paulo e comecei a trabalhar com a imunologia.
Cabral: Logo depois que voltei ao Brasil, o Jorge Kalil, uma referência em pesquisas de vacinas no país e quem me recebeu no laboratório que coordena, no Incor (Instituto do Coração). Ele falou da minha metodologia, achava que eu poderia contribuir nesse combate. A princípio, respondi que não, estava começando a desenvolver outros projetos, estudando a bactéria estreptococo e a criação de uma vacina contra a chikungunya.
Diante da gravidade da situação, Kalil falou: readapte-se. Foi o que fiz. Desde então minha cabeça não parou mais. Sou hiperativo, começo e tenho dificuldade para parar, as coisas foram crescendo…
Cabral: Os vírus fazem muitas mutações e ainda se sabe pouco sobre o novo coronavírus. A proposta inicial foi evitar o uso de material genético para minimizar surpresas. Eu já conhecia o coronavírus em sua base, quando surgiu o Sars, em 2002 na China.
Cabral: Requer muito tempo, por que a vacina é uma das melhores soluções a longo prazo. É necessário estudar muito o alvo, seja um protozoário, vírus, bactéria… Depois é preciso desenvolver a melhor estratégia de combate para ter uma vacina.
Escolhemos para qual parte do vírus queremos desenvolver a resposta imunológica: basicamente, se você coloca uma pessoa em uma estrada sozinha, ela não vai conseguir chegar facilmente ao destino sem um meio de transporte.
Com o sistema imunológico também é assim, tem que achar uma forma de ativá-lo, não só colocando um pedaço do vírus lá. Demanda bastante tempo, realização de testes in vitro e em animais, até achar a melhor composição. Tem que seguir todos os rigores científicos. Somos cientistas, então o processo tem que ser empírico. Nesse momento, com a pandemia de coronavírus, o prazo é bem menor, então a melhor forma é juntar várias cabeças.
Cabral: A diferença é que trabalhamos com partículas, não com o material genético do vírus em si. O que vamos fazer é pegar pedaços do coronavírus responsáveis por entrar nas células do corpo humano. São aquelas “florzinhas”, chamadas de “proteína de spike”.
Juntamos esses fragmentos com partículas sintéticas, parecidas com vírus, mas sem material genético, ou seja, ocos. Isso impede a multiplicação. Como a partícula criada em laboratório imita um vírus, o sistema imunológico estranha e reage. O pedaço do corona colocado lá provoca a defesa também contra ele. Portanto a ideia é desativar as “florzinhas” do vírus e impedir que ele entre nas células humanas.
Cabral: A ideia é que nos próximos dois anos a vacina esteja pronta para ser usada na população. O combate a cada alvo é diferente. Contra a malária, por exemplo, levaram-se décadas. Nesse caso tem que ser mais rápido porque vivemos uma pandemia. Outros países também estão desenvolvendo fórmulas, mas é importante que o Brasil tenha seus próprios produtos. Existem institutos de pesquisa magníficos para isso, Butantã, USP, Oswaldo Cruz…
Cabral: O Brasil depende quase exclusivamente do financiamento do setor público. Tem o lado bom e o ruim. O ruim é ter um dinheiro muito limitado. O bom é ter autonomia para não sofrer pressões do mercado. Por exemplo, a indústria farmacêutica não tem poder sobre a pesquisa, o que pode ou não ser publicado.
Em outros países, como Estados Unidos, Suíça e Inglaterra, o aporte vem muito de empresas e universidades. Aqui a área de pesquisa está sucateada. Bolsas, CNPq, Capes… Dependem muito da oscilação política do país. Os estudantes de pesquisa, que são a mão de obra mais qualificada, não têm incentivo. É importante dizer que em um período de crise como esse, com a população cobrando, há investimento. Mas quando passa é comum cortarem verbas.
Cabral: Sem sombra de dúvidas. Se não fosse essa pandemia, estaríamos em um limbo, sendo chamados de parasitas, ouvindo que universidades públicas estão envolvidas com drogas. Loucura isso! Para você ver a diferença: quando fui estudar na Inglaterra, ao entrar no país, fui abordado por uma policial e mostrei os documentos.
Quando disse que era pesquisador, a fisionomia dela mudou, deu boas vindas, dicas de transporte, etc. No Brasil escuto esse tipo de barbaridade… Sem contar que é uma estratégia extremamente ignorante. Se cortarem investimentos para a ciência, tudo vai abaixo, perdemos em áreas como saúde, tecnologia, finanças. Não dá para sair importando tudo. Mas é difícil convencer alguém que tem doutorado, PhD a continuar estudando aqui somente com uma bolsa. É literalmente pedir para a ciência morrer.
Cabral: Espero que passemos por essa fase mais unidos. Vem sendo feito um esforço dos profissionais de saúde, cientistas, jornalistas… Vamos desenvolver muitas coisas durante esse período, mas não adianta fazermos nosso melhor se isso não chegar à população.
Cabral: Irresponsável e desumano. Primeiro porque Bolsonaro ocupa o cargo mais concorrido do Brasil, que tem ação efetiva na vida de cada cidadão. E desumano, pois quando a pessoa nega os dados, se perde o apreço pela vida. Tem milhares de mortos pelo mundo.
Fonte: Uol